Corpos e mobílias
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- Calcular frete"O número impressiona, ainda mais para um livro de estreia: 82 poemas. Mas não se trata, evidentemente, de sublinhar o valor de uma obra poética por seus números, e sim por suas palavras. O que elas dizem e, sobretudo, o modo como dizem o que dizem. E é aí que Júlia Azzi, com seu Corpos e mobílias, mostra a que veio. Um desconforto, seja ele individual, familiar, existencial ou social, atravessa esse conjunto de poemas sem, no entanto, configurar-se propriamente como seu tema: não é um falar sobre o desconforto, mas a partir dele. Esse desconforto, para dizer de outra maneira, é um traço da personalidade que (se) enuncia, a si mesma e ao mundo, ao longo das quatro seções do livro: um desconforto que não descamba para a melancolia, nem para a revolta, nem para a ironia ? sabendo se valer delas, quando necessário; que se resolve pela inteligência de um olhar que observa ?os olhos murchos/ do chute/ na calçada? e os absorve em seu ?corpo cheio de becos?; que se indaga permanentemente, ?como quem cultiva certezas/ matemáticas sobre as/ dores?, com a consciência de que ?todo adolescente/ no fundo de algum lugar/ fala em alma?. A dicção do desconforto, na poesia de Júlia Azzi, é embalada por uma voz esquiva, que se sabe ?confinada/ a espaços cada vez menores/ habitando um cabelo/ um ponto da pele/ de meu corpo em garras?, e reforçada pelos cortes calculados dos versos ? abruptos mas sem alarde, sintáticos mas sem condescendência. Uma voz e uma dicção, enfim, capazes de interiorização sem derramamento: ?não aprendi a dobrar o corpo com cuidado/ amasso-o/ até caber no próprio embrulho/ como um nó?. Em outro plano, a recorrência do corpo e do espaço da casa, presentes desde o título do livro, é contrabalançada pelos elementos do universo orgânico exterior ? terra, insetos, plantas, frutas, bichos ?, numa mescla anunciada, harmônica e antiteticamente, pelos títulos das seções: ?espectros e cascas?, ?garras e dentes?, ?pele, pulsos e pés? e ?pelos e folhas?. Animal e social, transcendente e biológico, matemático e instintivo, eis o humano. Nos poemas de Corpos e mobílias, há quase sempre um cotidiano entranhado e estranhado: ?a torneira perdida/ na força do líquido/ exalta um triunfo na pia?. Por essa dupla valência, são poemas que pedem para ser lidos com vagar, com silêncios entre um e outro, avançando como quem teme encontrar aquilo que quer, mas quer encontrar aquilo que teme: ?alguém que gaste as solas dos sapatos/ atravessando-o de um lado a outro/ o perverte com sua gastura interna:/ encontrar nele uso (mesmo o desespero)/ é inutilizá-lo, tornando-o mais cheio?. Diego Grando Fevereiro/2021"
Júlia Azzi é poeta e professora de língua portuguesa e literatura. Nasceu em 1995 em Porto Alegre, mas sempre viveu em São Jerônimo; e há alguns anos mora no trânsito entre as duas cidades. É graduada em letras e mestre em estudos literários aplicados pela UFRGS.